domingo, 29 de abril de 2012

Um caminho tortuoso


 Apresentar a ciência como um triunfalismo infalível da civilização esconde o drama da descoberta 

 Do jeito que a ciência é ensinada nas escolas, não é à toa que a maioria das pessoas acha que o conhecimento científico cresce linearmente, sempre se acumulando.

 No entanto, uma rápida olhada na história da ciência permite ver que não é bem assim: o caminho que leva ao conhecimento é tortuoso e, às vezes, vai até para trás, quando uma ideia errada persiste por mais tempo do que deveria. Isso pode ocorrer por razões como censura política (veja o caso de Trofim Lysenko durante o regime stalinista na União Soviética) ou por ideologias na classe científica, promulgadas por membros influentes.

 Apresentar a ciência nas escolas e universidades ou nos meios informais de comunicação como um triunfalismo infalível da civilização esconde um de seus lados mais interessantes: o drama da descoberta, as incertezas da criatividade. Cientistas tendem a reagir negativamente às ideias que ameaçam o status quo.

 Por um lado, esse ceticismo é essencial, dado que a maioria das ideias novas está errada. Por outro, ele pode revelar um conservadorismo que atravanca o avanço do conhecimento. Um bom exemplo disso é o experimento de Albert Michelson e Edward Morley, realizado em 1887 para detectar o movimento da Terra através do éter, o meio material cuja função era servir de suporte para a propagação das ondas de luz. Tal qual as ondas de som se propagam no ar, supunha-se que as ondas luminosas também necessitassem de um meio para se propagar, o éter.

 O experimento mediria as diferenças na velocidade da luz quando um raio luminoso ia contra o éter ou a favor, como quando andamos de bicicleta e sentimos um "vento" contra nosso corpo. (Uma bola jogada contra ou a favor do "vento" terá velocidades diferentes.) Para total e completa surpresa da comunidade científica, o experimento não detectou diferenças na velocidade da luz em qualquer direção.

 Em meio à perplexidade generalizada, várias tentativas de explicar o achado foram propostas, inclusive uma por George Fitzgerald e Hendrik Lorentz que sugeria que as hastes do aparato podiam encolher na direção do movimento. Esse encolhimento de fato existe, mas não como proposto pelos dois. Apenas em 1905 Einstein explicou o que estava acontecendo, com sua teoria da relatividade especial: o éter não existe -a velocidade da luz é sempre a mesma, uma constante da natureza.

 Observações recentes andam questionando a existência de um outro meio material ainda não detectado, a matéria escura. Essa matéria, supostamente feita de partículas diferentes das que compõem o que conhecemos no Universo (ou seja, coisas feitas de elétrons, prótons e nêutrons), deve ser seis vezes mais abundante que a matéria comum e se aglomerar em torno de galáxias, inclusive a nossa.

 As observações não detectaram a quantidade esperada de matéria escura. E agora? A coisa é complicada porque existem outros métodos de detecção da matéria escura que parecem bastante claros. Qualquer que seja a resolução do impasse atual, estou certo de que algo de novo e surpreendente está para acontecer. Será interessante ver a reação da comunidade ao se deparar com o inesperado.

domingo, 8 de abril de 2012

'Jogos Vorazes', evolução e amor



O filme revela uma perspectiva triste da humanidade: moralmente, continuamos nas cavernas

No fim de semana passado assisti ao filme "Jogos Vorazes", baseado na trilogia de Suzanne Collins. Confesso que fui meio a contragosto, se bem que meus dois filhos mais velhos me garantiram que eu iria gostar. E gostei mesmo.

No gênero das distopias futurísticas, essa é uma ficção que traz o que a humanidade tem de melhor e de pior, ancorada nas lições do darwinismo. Mesmo com narrativa um tanto juvenil, o filme tem bela cinematografia e os atores são excelentes, misturando nomes famosos, como Donald Sutherland, com caras novas, como Jennifer Lawrence, que faz a heroína Katniss Everdeen.

Num futuro distante, o poder foi centralizado. Alguns poucos vivem uma vida de extrema decadência e afluência no Capitólio, o coração de Panem, enquanto que a maioria sobrevive miseravelmente em 12 distritos adjacentes, cuja função é prover bens para a classe dominante. A semelhança com o Império Romano não é mera coincidência.

De fato, os tais jogos são uma reinvenção das terríveis batalhas travadas pelos gladiadores no Coliseu. A cada ano, um casal de jovens de cada distrito é selecionado para participar dos jogos. Para o deleite da população de Panem, os 24 batalham até o último sobrevivente, que pode retornar livre para o seu distrito. Embora não tenha lido os livros, soube que são ainda mais violentos do que o filme. Quando perguntei aos meus filhos por que essa história não virou videogame, me informaram que "em videogames é tabu matar criança". Esse tipo de moral jamais restringe a ficção.

Armas de todos os tipos são fornecidas, se bem que chegar até elas pode ser fatal. Os jogos são um exercício de sobrevivência do melhor "adaptado", embora isso não signifique necessariamente ser o mais rápido ou o mais forte. (Uma combinação dos dois sem dúvida é útil, mas não decisiva.)

Com o desenrolar da história, vemos alianças sendo formadas para derrotar um inimigo poderoso. O dilema, claro, é que essas alianças são temporárias, já que no final só um pode sobreviver. Você só pode confiar em si mesmo. A menos que alguém queira se sacrificar por você.

Na teoria da evolução, autossacrifício faz sentido se ele beneficiar a sobrevivência do grupo. Mas qual o seu valor quando não existe um grupo e cada um deve lutar por si? Será esse tipo de sacrifício a maior expressão de amor?

Até o amor pode ser uma boa estratégia, e podemos nos questionar se as poucas relações afetuosas eram genuínas ou apenas convenientes. Um teste só poderia ocorrer após os jogos, o que é impossível, já que apenas um pode sobreviver. A relação de Katniss e seu companheiro de distrito Peeta me pareceu bem unidirecional.

Esse tipo de narrativa revela uma perspectiva triste da humanidade: embora possamos desenvolver tecnologias sofisticadas, moralmente continuamos nas cavernas.

Uma louvável exceção é Steven Pinker, que em seu livro mais recente descreve como nossa espécie vem progredindo moralmente. Talvez, mas falta muito ainda.

Espero que as pessoas que leiam o livro de Pinker ou assistam a "Jogos Vorazes" vejam a lição dessas obras: que só progrediremos moralmente como espécie quando tornarmos a proteção da vida um lema.