domingo, 28 de agosto de 2011

Definindo o Universo




O Universo não é uma 'coisa' como uma estrela; estudá-lo significa analisar tudo o que detectamos dentro dele

O que é essa coisa que chamamos de Universo? Parece uma daquelas perguntas triviais. Um cínico já diria: "E eu com isso, ora? Tenho mais o que fazer!"

Na realidade, entender a natureza do Universo é entender quem somos e como nos encaixamos no mundo. Para ver isso, basta considerar como uma pessoa do século 16 pensava o Cosmos. A Terra, inerte, era o centro da criação e tudo girava à sua volta: Lua, planetas, estrelas, cada qual levado por uma esfera cristalina. O Cosmos era esférico e finito como uma cebola. Após a última esfera celeste, a esfera das estrelas, encontrava-se outra: a Primum Mobile. Sua função era dar movimento a todas esferas internas.

Além dela estava o Empíreo, a parte do céu sob domínio de Deus e suas criaturas divinas. Uma hierarquia vertical definia a vida das pessoas: os virtuosos poderiam finalmente ascender ao céu. A geometria cósmica e o destino dos mais pios eram indissolúveis.

Tudo mudou quando Copérnico e, mais dramaticamente, Galileu, Kepler, Descartes e Newton estabeleceram o Cosmos heliocêntrico. Newton, em particular, afirmou que apenas num Universo infinito o colapso gravitacional poderia ser evitado. Num Universo infinito, a verticalidade que havia definido a busca espiritual das pessoas se perdia. Mesmo assim, o Cosmos newtoniano permaneceu estático.

Quando chegamos a Einstein no século 20, as coisas ficaram mais sutis. O espaço e o tempo formam uma entidade única, o espaço-tempo.

Essa matriz quadridimensional é dinâmica, respondendo à distribuição de matéria e energia.

Com Einstein, o espaço e o tempo ganharam plasticidade. Estudar o Universo não significava apenas estudar o que existia no Universo, mas o Universo em si. A separação entre o Universo e as coisas que ele contêm não era mais possível.

Como, então, definir o Universo? Uma primeira resposta seria "o conjunto das coisas que existem no volume de espaço que podemos medir".

Que coisas? Galáxias, estrelas, planetas, aglomerados de galáxias, buracos negros, enfim, os objetos que detectamos com nossos instrumentos, determinando suas propriedades físicas, como massa, composição química e rotação.

Existem também coisas que medimos e não sabemos ainda o que são, como a matéria e a energia escura. E, também, coisas que ainda não sabemos existir. Mas o Universo é mais do que o conjunto das coisas que ele contêm, certo?

O Universo não é uma "coisa", da forma que uma estrela é uma coisa. Medimos propriedades que atribuímos ao Universo, como as flutuações de temperatura da radiação cósmica de fundo ou a taxa de expansão cósmica. Mas essas medidas são de coisas que existem no Universo. A inferência que esse afastamento representa a expansão do Universo vem a posteriori, no contexto da teoria de Einstein que mostra que a geometria cósmica pode se expandir ou ser contraída.

Será, então, que o Universo é a solução da equação obtida da teoria de Einstein? Não, porque para obtermos essa equação e suas soluções fazemos uma série de aproximações. Não devemos cair no erro de equacionar um modelo com a coisa que ele modela. O Universo é mais um conceito do que uma coisa.

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domingo, 21 de agosto de 2011

Escolheremos a graça ou a natureza?




O filme "A Árvore da Vida" nos coloca entre o caminho da graça e da natureza; não temos de fazer essa escolha


NA SEMANA passada assisti ao filme "A Árvore da Vida", de Terrence Malick. Se existe um gênero de cinema dito metafísico, esse filme é um exemplo perfeito. Algumas das questões mais profundas que foram (e são) feitas no decorrer da história reaparecem aqui, em meio à tribulada vida de uma família de classe média americana da década de 1950.


Malick nos lembra que o sublime e o trágico usam vários disfarces, alternando cenas de beleza numa rua comum com cenas pesadas.

O tema central do filme é a perda e nossa relação com ela. Malick contrasta a fragilidade humana com o esplendor dramático da natureza, inserindo uma narrativa da criação que começa com o Big Bang, mostra estrelas nascendo em gigantescas e coloridas explosões, a própria Terra surgindo, o desenvolvimento de criaturas e plantas multicelulares, a era dos dinossauros, até chegarmos ao nascimento de Jack, o filho mais velho da família O'Brien.

Com isso, Malick nos insere no épico da criação, mostrando que a história cósmica é a nossa história.
As imagens e a música evocativa (Mahler, Brahms, Couperin, Berlioz, e o tema original de Alexandre Desplat) nos induzem a ver o Universo, a vida e a humanidade como manifestação de um Deus Spinoziano, em tudo e em todos, transcendente.

No decorrer do filme, testemunhamos vários tipos de perda. O'Brien e sua esposa têm três filhos. Jack é o pivô dramático do enredo, sofrendo constantemente da ira do pai frustrado, que se mescla com um afeto violento. O'Brien queria ter sido músico, mas acaba numa fábrica, talvez como engenheiro.

Fora a fúria paterna, Jack tem de lidar com a superioridade do irmão mais novo, R. L., que toca violão e desenha muito bem, além de ser mais bonito. Nos ciúmes e adoração que Jack sente pelo irmão, vemos a luta que todos temos com nossas limitações. Lembrei-me da angústia de Salieri ao se deparar com o gênio de Mozart em "Amadeus".

Já a mãe é uma criatura em constante êxtase beatífico, uma mística que ama a natureza com fervor religioso: "Ame a todos e a tudo. Ame cada folha, cada raio de luz".

A paz (relativa) familiar é destruída quando R. L., o filho, é morto no Vietnã aos 19 anos -algo que vemos no início do filme.

A narrativa vai e volta no tempo, e vemos Jack adulto (Sean Penn), dentro de um prédio moderno em Dallas que parece um sarcófago, olhando para fora e perguntando "Onde você está?" ao seu irmão e a Deus. O filme usa muita narração sussurrada, como se fossem preces. Malick transforma a sala de projeção em templo: o cinema sacro.

O filme nos coloca entre "o caminho da graça e o caminho da natureza". Graça no sentido cristão de generosidade, humildade e bondade, de uma força interna imune a todo o tipo de barreira, ancorada na nossa humanidade. Sem nós, a graça não existe. Já a natureza é indiferente, avança resolutamente, criando e destruindo sem um objetivo final. Nós, frágeis humanos, estamos tentando compreender o significado de nossas vidas. Uma morte prematura é indesculpável.

Não precisamos escolher entre a graça e a natureza. Existe uma terceira via, em que encontramos graça na natureza, não apenas através de sua beleza e cada folha e raio de luz, mas por meio da nossa profunda conexão com ela.

O que matou o pai, figurativamente, mesmo antes da morte do filho, foi ter se distanciado do sentido de graça, da conexão profunda com o que nos cerca, vivo ou não.

Espero que, das várias mensagens do filme de Malick, uma que perdure seja que graça e natureza constituem um todo indissolúvel.

Afinal, aqui estamos, criações cósmicas que somos, capazes de inventar o conceito de graça e de viver inspirados por ele. Dedico esse texto à minha amiga Ciça Guimarães.


MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "Criação Imperfeita"

domingo, 14 de agosto de 2011

O futuro da corrida espacial




Ficarmos presos na Terra, sem explorar o Universo pelas missões espaciais, é como negar o nosso destino


Eu tinha dez anos quando, no dia 20 de Julho de 1969, Neil Armstrong pousou na Lua e declarou: "Um pequeno passo para um homem, um salto gigante para a humanidade".

Suas palavras marcavam uma nova era da exploração espacial, semelhante ao que ocorrera aqui na Terra alguns séculos antes, quando estendemos nossa presença aos confins do nosso planeta.

Avançando para 2011, muita coisa mudou. Ainda não temos uma base lunar e, de fato, não pousamos mais na Lua há quase 40 anos. Voos espaciais tripulados são caros e, claro, arriscados.

Entretanto, nos EUA, o presidente Obama permanece firme em sua determinação de enviar humanos ao espaço, conforme afirmou em discurso feito em abril deste ano:

"Em 2025, teremos novos tipos de espaçonaves para enviar humanos ao espaço distante. Enviaremos astronautas até um asteroide. Até meados de 2030 acredito que humanos entrarão em órbita de Marte. Espero ainda estar por aqui para ver".

Para as pessoas da minha geração, missões tripuladas são inevitáveis. Ficarmos presos na Terra é negar o nosso destino. Não sei o que a geração mais nova pensa sobre o assunto. Mas tenho certeza de que muitos dirão que é hora de irmos em frente, de realizarmos sonhos novos. Mas que sonhos são esses?

Nos EUA, o interesse de muitos políticos na corrida espacial é financeiro: manter milhares de empregos abertos para o seu eleitorado. Juntamos a essa motivação o sonho de ir aonde nunca fomos, de explorar os confins do Cosmos, talvez até semeando a vida em novos mundos. Será essa a nossa missão? Espalhar vida inteligente galáxia afora?

Temos também os cientistas, que tendem a preferir missões robóticas mais baratas e em maior número, feitas para cobrir a pesquisa nas mais diversas áreas da astronomia, da astrofísica e da planetologia. Finalmente, temos a privatização da exploração espacial (hotéis e turismo espacial) e a possibilidade de que várias nações e grupos privados tenham interesses econômicos além da Terra, o que já ocorre.

Se quisermos maximizar a relação custo-benefício da exploração espacial, missões robóticas são mais eficientes. Mesmo que seja verdade que um astronauta em Marte teria feito o que as sondas Spirit e Opportunity fizeram em um tempo muito mais curto, a verdade é que não temos o dinheiro ou a tecnologia para enviar humanos até lá.

Não sabemos como nos proteger da radiação letal que existe no espaço nem como evitar o declínio dos músculos por lá. Precisamos de mecanismos de propulsão mais fortes.

Mais importante ainda: precisamos de uma organização internacional dedicada à exploração.

O futuro da exploração espacial tem de ir além das fronteiras e da propaganda patriótica que marcou a sua história até aqui. Ao deixarmos nosso planeta, o faremos como uma espécie e não como indivíduos de um ou outro país.

domingo, 7 de agosto de 2011

O bom, o mau e o feio

MARCELO GLEISER

O bom, o mau e o feio


O desafio da globalização será reinventar nossa natureza tribal; queremos viver sem bandeiras?


Será que a globalização, essa força que anda redefinindo o mundo, melhorará ou piorará as coisas? De um lado, vemos o mundo encolher com maior acesso à internet e com o aumento da eficiência e velocidade dos transportes e da intensidade do comércio internacional. De outro, nosso tribalismo desconfia de culturas diferentes e reage negativamente a valores externos.
Há muito tempo futuristas preveem que o desenvolvimento tecnológico deixará o mundo cada vez mais homogêneo. Considere, por exemplo, o livro do físico Mikio Kaku "A Física do Futuro", continuação de outros semelhantes que ele escreveu.
Ele entrevistou 300 cientistas para criar uma visão utópica de um mundo definido pela ciência. Em 2100, diz, computadores inteligentes trabalharão com humanos, o acesso à internet será por lentes de contato e moveremos objetos com o pensamento; nanorrobôs destruirão células de câncer, a propulsão a laser redefinirá as viagens espaciais e colonizaremos Marte. Não haverá barreiras comerciais, e a mesma cultura e os mesmos alimentos serão divididos por todos. Essa homogeneização da sociedade acabará com as guerras.
Essas maravilhas tecnológicas são extrapolações do que já temos. Se alguém tivesse previsto que em 2010 teríamos laptops capazes de baixar remotamente gigabytes de informação ninguém acreditaria. O difícil é prever o inesperado.
Recentemente, o cientista político Pankaj Ghemawat, professor de estudos estratégicos da Universidade de Navarra, em Barcelona, Espanha, publicou um livro em que critica o excesso de otimismo com relação à globalização.
Segundo ele, valores que tendem a diluir barreiras culturais vão contra a nossa natureza tribal. O autor mostra que a maior parte de nossas relações permanece local: o correio internacional é apenas 1% do total, telefonemas internacionais são menos de 2% e tráfego internacional na internet representa entre 17% e 18% das informações da rede.
O fundamentalismo é uma reação à essa tendência homogeneizante. Quando valores externos ameaçam aqueles em que você e seus antepassados baseiam suas vidas, existem duas opções: ou você os absorve a um maior ou menor grau ou você se rebela e se fecha ainda mais, reagindo agressivamente à qualquer tipo de "intrusão".
Além de nossas famílias, nossa rede de interação social e cultural é baseada na aliança a certas tribos: Palmeiras ou Corinthians, brasileiro ou argentino, branco ou negro, católico ou muçulmano etc. A troca de ideias enriquece, mas a sua homogeneização empobrece.
Muitas das extrapolações tecnológicas que Kaku e outros descrevem estão chegando. Questões relativas a cultura e mercado são mais sutis. Não há dúvida de que barreiras comerciais continuarão a cair e que a globalização fará com que bens sejam acessíveis a um número cada vez maior de pessoas.
O desafio será reinventarmos nossa natureza tribal. Será que podemos (ou queremos) viver sem bandeiras? Se não aprendermos a respeitar as nossas diferenças, criando uma atmosfera de troca de informações e culturas, o sonho de um mundo melhor pode se transformar num pesadelo nada utópico.

MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "Criação Imperfeita"