domingo, 25 de dezembro de 2011

Quando mito e ciência se encontram



Muito do que é narrado nas tradições religiosas, como a estrela de Belém, é inspirado por eventos reais

No seu belíssimo "A Adoração dos Magos", o pintor renascentista italiano Giotto di Bondone reproduz a icônica visita dos reis magos à manjedoura onde está o bebê Jesus. Acima, vemos a estrela de Belém, representada como um cometa dourado. Giotto observou o cometa de Halley em 1301, o que influenciou sua obra de 1304.

O que ele não sabia é que o cometa havia aparecido também em 12 a.C.. A conexão que Giotto fez entre o cometa e a famosa estrela foi criticada por muitos, incluindo São Tomás de Aquino. (Quem estiver interessado em visões astronômicas de fim de mundo consulte o meu livro "O Fim da Terra e do Céu"). Cometas não brilham durante o dia, ele argumentou; fora isso, cometas são um mau agouro: "No sétimo dia todas as estrelas, tanto planetas quanto estrelas fixas, cairão dos céus com caudas em fogo, como cometas", escreveu.

A crença de que fenômenos celestes têm significado profético integra inúmeras culturas. Os céus, sendo a morada dos deuses (ou de Deus), espelham as intenções divinas, sejam elas boas ou más.

O grande astrônomo alemão Johannes Kepler, tentando justificar o evento bíblico em termos astronômicos, mostrou que Júpiter e Saturno sofreram três conjunções (estavam perto um do outro) no ano 7 a.C.. Ele imaginou que essas conjunções criassem uma nova, que seria o nascimento de uma estrela. (Hoje sabemos que o fenômeno nova ocorre quando uma estrela do tipo anã branca suga matéria de uma companheira a ponto de acumulá-la sobre sua superfície em altas densidades. O hidrogênio acumulado funde-se em hélio, criando uma nova, que brilha de 20 a cem dias).

Várias tentativas já foram feitas para se associar a estrela de Belém a um evento astronômico, nenhuma ainda conclusiva, se bem que muitas são sugestivas. Isso não tira a importância mítica do evento bíblico, mas mostra que muito do que é narrado nas tradições culturais e religiosas da humanidade é inspirado por eventos reais.

Outro exemplo curioso é o das renas voadoras, cuja origem já foi ligada aos efeitos de um cogumelo alucinógeno (capaz de causar delírios), o Amanita muscaria, que era, e presumivelmente ainda é, consumido em rituais xamânicos na Lapônia e em certas regiões da Sibéria. O cogumelo tem o aspecto que vemos nos contos de fada, vermelho com bolinhas brancas, e aparece frequentemente em lendas de várias culturas europeias. Entre os seus vários apelidos, meu favorito é "ovolo matto" (ovo louco), da região italiana de Trentino.

O etnobotânico Jonathan Ott chegou a especular que as cores do cogumelo inspiraram as da roupa do Papai Noel e que as renas davam a impressão de voar após ingerir o cogumelo e agir de forma descontrolada. Ou talvez os pastores e caçadores da Lapônia viam tais coisas após ingerir o cogumelo.

A cultura popular-religiosa ou não-é um rico repositório de experiências e narrativas, muitas vezes inspirada pelo que as pessoas veem (ou pensam que veem) e sentem (ou pensam que sentem). Se a ciência pode iluminar a origem dessas histórias, isso só adiciona à sua magia. Neste ano, pendurei um Amanita muscaria na árvore de Natal. A estrela, claro, já está no topo.

domingo, 18 de dezembro de 2011

As quatro eras da astrobiologia



Somos já relacionados com outros seres extraterrestres, caso eles existam; toda vida vem da mesma fonte

Domingo passado, dei a palestra inaugural na Escola Avançada de Astrobiologia de São Paulo, um evento que reuniu cientistas de ponta e alunos de pós-graduação dos quatro cantos do planeta. Minha tarefa era ligar a cosmologia, que estuda a origem e a evolução do Universo, à astrobiologia, que se ocupa da origem da vida na Terra e da possibilidade de vida extraterrestre.

Como ponto de partida, é bom lembrar que nós, e qualquer outro tipo de vida que por acaso exista no Cosmo, somos produto da mesma física e química. Nisso, somos já relacionados com outros seres extraterrestres, caso existam. Toda vida vem da mesma fonte.

As criaturas vivas são aglomerados de moléculas capazes de criar cópias de si mesmos.

Como moléculas são coleções de átomos, e átomos são feitos de prótons, nêutrons e elétrons, a vida precisa, como ingredientes essenciais, das partículas de matéria que preenchem o Cosmo.

A primeira era foi, portanto, a era física, começando com a origem do Universo e se estendendo até a formação das primeiras estrelas algumas centenas de anos após o Big Bang. Foi nessa era que surgiram os elétrons, prótons e nêutrons que, primeiro, formaram os núcleos atômicos mais leves, isótopos de hidrogênio, de hélio e de lítio. Em torno de 400 mil anos após o Big Bang, prótons e elétrons combinaram-se para formar átomos de hidrogênio, os mais simples e abundantes do Universo. Esse átomos aglomeraram-se em nuvens gigantescas que, com a ajuda da gravidade, formaram as primeiras estrelas: enormes e de curta vida. Esses monstros estelares explodiram com tremenda violência, gerando os átomos que preenchem a Tabela Periódica, o carbono, o oxigênio, o nitrogênio e os outros ingredientes de todos os seres vivos. Aqui se inicia a segunda era, a era química.

Esses átomos espalharam-se pelo espaço interestelar, semeando as galáxias nascentes que, já no segundo bilhão de anos após o Big Bang, encheram o Cosmo. Nessas galáxias, o mesmo processo de vida e morte das estrelas foi se repetindo, e mais elementos químicos foram forjados. Junto a elas, nasceram planetas e suas luas. A diversidade de mundos é espantosa, cada qual semeado com sua dose de elementos químicos. Naqueles onde existe água líquida e uma química complexa, a vida pode ter surgido. Começou aqui a terceira era, a era biológica.

Sabemos que, em torno de 3,8 bilhões de anos atrás, a vida surgiu aqui na Terra, composta dos restos de estrelas que explodiram em nossa vizinhança cósmica. Possivelmente, ela surgiu também em outros lugares, tanto antes quanto depois de ter surgido aqui. A quarta era, que chamo de era cognitiva, é bem mais recente, começando há menos de meio milhão de anos na Terra. Pode ter começado um ou dois bilhões de anos antes daqui, mas não muito mais do que isso. A vida demora a evoluir de seres unicelulares a seres multicelulares e, destes, a seres inteligentes, se é que o faz. A diversidade da vida em um planeta depende de sua história. A vida que encontramos aqui só existe aqui. Mesmo se a vida for de fato comum no Cosmo, é pouco provável que a vida inteligente o seja. Deste modo, somos únicos no universo.

domingo, 4 de dezembro de 2011

A 'partícula de deus' continua arredia



O bóson de Higgs é o elo perdido do modelo que descreve tudo o que sabemos sobre a matéria

A cada dia, aumentam as expectativas de que algo precisa acontecer no LHC (do inglês Large Hadron Collider, Grande Colisor de Hádrons), o gigantesco acelerador de partículas do Cern (Organização Europeia de Pesquisa Nuclear). Desenhado para encontrar, principalmente, uma partícula chamada "Higgs", em homenagem ao físico inglês Peter Higgs, que propôs sua existência, até o momento os experimentos não têm nada a mostrar.

Pelo contrário, os resultados parecem delimitar a massa da hipotética partícula a valores que contrariam muitos cálculos. Talvez a constituição da matéria seja mais estranha do que suspeitamos.

É conveniente falar da massa de partículas pesadas em unidades da massa do próton, o integrante principal do núcleo de todos os átomos. O limite atual da massa da partícula Higgs, anunciado no dia 18 de novembro passado, é menor do que a de 141 prótons, provavelmente em torno de 120 prótons. Se a Higgs existir, claro. Porque devemos sempre lembrar que físicos não ditam como funciona a natureza.

Uma partícula como Higgs ajudaria a compreensão de como outras partículas (como quarks e elétrons) têm as massas que têm, mas não significa que a Higgs existe.

Mas antes de continuarmos, um pequeno aparte sobre esse estranho apelido, "partícula de deus". Claro que uma partícula de matéria não tem nada a ver com Deus. "A Partícula de Deus" é o título do livro do prêmio Nobel Leon Lederman, diretor do laboratório americano Fermilab quando fiz meu pós-doutorado lá. O título foi sugerido pelo seu editor, que não gostou do título que ele havia proposto. Lederman queria chamar o livro de "The God Damned Particle" ("maldita partícula") porque ninguém consegue encontrá-la. Mas o editor achou que "The God Particle" venderia muito mais. Acho que ele tinha razão.

A Higgs é o elo perdido do Modelo Padrão, um conjunto de resultados que descrevem em detalhe tudo o que sabemos sobre as partículas que compõem a matéria e suas interações. Ele é um triunfo da física do século 20, reunindo décadas de grandes descobertas experimentais e teóricas. Sua precisão é tamanha ao descrever como as partículas interagem entre si que ninguém, ou quase ninguém, duvidava de que a Higgs, ou algo como ela, seria encontrada. A realidade, entretanto, é outra: não só a Higgs não apareceu, como, se existir, terá uma massa que não seria a mais "natural".

A busca por uma partícula tão elusiva é um excelente modelo de como a ciência funciona. Uma hipótese é proposta, prevendo a existência de uma nova entidade natural. Cálculos detalhados são feitos, tentando isolar as propriedades dessa entidade hipotética. Experimentos são montados para testar a hipótese, ou seja, para tentar encontrar a possível nova entidade. Em caso afirmativo, ótimo. Em caso negativo, há duas alternativas: ou a entidade não existe ou a hipótese deve ser refinada. Esse refinamento gera novas hipóteses que também precisam ser testadas.

Esse processo eventualmente leva a novas explicações de como a natureza funciona. Um resultado negativo muitas vezes abre caminhos inesperados, ampliando nosso conhecimento do Universo. Em ciência, crise leva ao novo.

domingo, 27 de novembro de 2011

O vazamento



Toda exploração nos limites do conhecimento envolve riscos enormes. A do pré-sal não será diferente

Aconteceu o primeiro desastre sério da história recente da exploração petrolífera da costa do Rio. Cheguei aqui nesta semana e fiquei horrorizado com as manchetes sobre o vazamento de óleo no campo de Frade, em poço explorado pela Chevron na bacia de Campos, a 370 quilômetros do continente.

O vazamento ocorre a uma profundidade de 1,2 km e, até quarta-feira, havia liberado, segundo a empresa, em torno de 2.500 barris após 15 dias. Existem disparidades entre o que a ANP (Agência Nacional de Petróleo), os observadores da ONG SkyTruth e os porta-vozes da Chevron andam dizendo.

Segundo a SkyTruth, o vazamento foi de cerca de 15 mil barris, muito superior ao declarado pela companhia. Enquanto a Chevron diz ter engajado 18 navios em rodízio para a limpeza da região, a Polícia Federal do Rio diz que havia apenas um. Para piorar, a empresa contratada para perfurar o poço, a Transocean, é a mesma que operava a plataforma Deepwater Horizon, responsável pelo maior vazamento da história americana, no golfo do México, no ano passado.

Consequentemente, a ANP suspendeu as atividades da Chevron no Brasil e negou à companhia a possibilidade de perfurar novo poço para explorar a camada do pré-sal. Com uma reserva estimada em 50 milhões de barris, o pré-sal é uma das maiores descobertas dos últimos 30 anos. Não é coincidência que, quando voo para o Rio hoje, noto que uma fração razoável dos passageiros trabalham para a indústria petrolífera e suas subsidiárias.

Com o aumento da população mundial e, consequentemente, do consumo de petróleo e seus derivados, fica cada vez mais difícil achar reservas de fácil exploração. Mas o pré-sal realmente bate todos os recordes. Com profundidade de 6 a 7 quilômetros da superfície e passando por uma camada de sal com espessura variando de 200 metros a 2 quilômetros, a extração será extremamente difícil, desafiando a tecnologia atual.

Desde que ouvi falar do pré-sal pela primeira vez, tenho tido pesadelos sobre a possibilidade concreta de desastres ecológicos de dimensões catastróficas, capazes de comprometer a costa do Brasil desde o Espirito Santo até Santa Catarina.

Ouvimos muito sobre a euforia da descoberta e sobre como é viável a extração do petróleo sob essas condições complicadas, mas muito pouco sobre medidas tomadas caso vazamentos ocorram, o que me parece inevitável. Toda exploração nos limites do conhecimento envolve riscos enormes. O pré-sal não será uma exceção para esse fato.

Enquanto outras economias debatem como ir além do uso de combustíveis fósseis, o Brasil, com sua vasta rede hidrelétrica e potencial solar e eólico, parece estar querendo ir para trás. Claro que todos querem os royalties que vêm da exploração do petróleo, sempre com a visão do lucro a curto prazo. Mas acidentes como esse, no campo de Frade, mostram os perigos da exploração desenfreada e sem medidas rígidas de controle.

O pré-sal pode vir a ser a galinha dos ovos de ouro do Brasil. Vale lembrar que, na fábula de Esopo, o dono da galinha, ganancioso e impaciente, acaba por matá-la para pegar os ovos que acreditava ter no ventre. E acaba sem nenhum.

domingo, 13 de novembro de 2011

O cérebro determina o que é real?



Estamos cercados de radiação eletromagnética que não vemos. O essencial é invisível aos olhos

Para que eu esteja escrevendo estas palavras, uma coreografia desconhecida organiza a ação coletiva de milhões de neurônios no meu cérebro: ideias emergem e são expressas em palavras, que datilografo no meu laptop graças à coordenação detalhada dos meus olhos e músculos. Algo está no comando, uma entidade que chamamos de "mente".

Segundo a neurociência moderna, nossa percepção do mundo é sintetizada em regiões diferentes do cérebro. O que chamamos corriqueiramente de "realidade" resulta da soma integrada de incontáveis estímulos coletados pelos cinco sentidos, captados no mundo exterior e transportados para nossas cabeças pelo sistema nervoso.

A cognição, a experiência concreta de existirmos aqui e agora, é uma fabricação de incontáveis reações químicas fluindo por bilhões de conexões sinápticas entre neurônios.

Eu sou e você é uma rede eletroquímica autossustentável, que se define através de sua atuação na malha de células biológicas que constituem o nosso corpo. Mas somos muito mais do que isso.

Somos todos diferentes, mesmo se feitos da mesma matéria-prima. A ciência moderna destituiu o velho dualismo cartesiano de matéria e alma em favor de um materialismo estrito. Hoje, afirmamos que o teatro do ser ocorre no cérebro e que o cérebro é uma rede de neurônios que se acendem e apagam como luzes numa árvore de Natal.

Ainda não temos ideia de como essa coreografia neuronal engendra a nossa sensação de existirmos como indivíduos. Vivemos nossas vidas convencidos de que a separação entre nós e o mundo à nossa volta é clara. Precisamos dela para construir uma visão objetiva da realidade que nos cerca.
No entanto, nossa percepção dessa realidade, na qual baseamos nossa sensação de existir como indivíduos, está longe de ser completa. Nossos sentidos capturam apenas uma pequena fração do que realmente ocorre à nossa volta. Trilhões de neutrinos vindos do coração do Sol atravessam nossos corpos a cada segundo.

Estamos cercados por radiação eletromagnética de todos os tipos-ondas de rádio, infravermelha, micro-ondas-sem nos dar conta disso. Sons escapam da nossa audição, grãos microscópicos de poeira e bactérias são invisíveis aos nossos olhos. Como disse a raposa ao Pequeno Príncipe: "O essencial é invisível aos olhos".

Nossos instrumentos em muito ampliam nossa visão, permitindo-nos "ver" o que escapa aos nossos sentidos. Mas a tecnologia tem limites, mesmo que esteja sempre avançando. Portanto, uma grande fração do que ocorre escapa e escapará à nossa detecção. O que sabemos sobre o mundo depende do que podemos medir e detectar.

Quem, então, pode determinar que sua sensação do real é a verdadeira? O indivíduo que percebe a realidade apenas com os sentidos? Ou o que amplifica sua visão com instrumentos diversos?

Obviamente, essas pessoas verão coisas diferentes. Se compararem o que chamam de realidade material, o conjunto das coisas que existem à sua volta, irão discordar completamente. Qual dos dois está certo? Eu proponho que nenhum está. Mas vamos ter de continuar essa conversa na semana que vem.

domingo, 6 de novembro de 2011

O que é o espaço?



O espaço vazio não existe: há um vácuo de flutuações de energia capazes de criar partículas de matéria

DE VEZ em quando é bom parar e refletir sobre coisas que pensamos ser triviais. Com frequência, descobrimos que o que tomamos como simples é bem mais complicado do que parece. Esse é o caso do conceito de espaço na física e na matemática.

Todo mundo tem uma noção intuitiva de espaço: é o que separa as coisas. Sem ele, tudo estaria embolado no mesmo lugar. Portanto, de acordo com essa definição, para entender o que é espaço implicitamente precisamos de outros objetos.

Obviamente, é difícil compreender o que é o espaço vazio, já que nesse caso não existem objetos distantes entre si. Mas conhecemos intuitivamente o seu significado: uma região sem qualquer matéria. Ou seja, para definirmos espaço, vazio ou não, precisamos de matéria.

Na matemática, espaço é uma construção abstrata, uma invenção para definir distâncias entre dois ou mais pontos ou entre dois ou mais objetos. É importante lembrar que espaço é uma invenção e que não tem, a princípio, uma existência física. Espaço não é uma coisa. Ou é?

Na física moderna, a história fica mais complicada e bem mais interessante. Para Newton, o criador das leis da mecânica e da gravidade, o espaço é uma espécie de palco onde se desdobra o drama da natureza. Os fenômenos ocorrem sem afetar o palco, que está lá apenas para permitir que objetos interajam entre si. Por exemplo, o Sol e a Terra ou você e uma cadeira. Com Einstein e a relatividade, tudo muda.

Einstein mostrou que o espaço não é inerte: ele responde à presença de matéria, sendo uma entidade plástica e não rígida como supôs Newton. Quando, no final do século 17, Newton explicou a atração gravitacional entre dois corpos, imaginou o espaço entre eles como sendo irrelevante. O que importava era a massa dos corpos e a distância entre eles. Para Newton, a gravidade age através do espaço, uma influência um tanto misteriosa que atua à distância: o Sol não precisa tocar na Terra para influenciá-la.

Einstein mudou isso, sugerindo que o espaço em torno de objetos é distorcido em proporção à sua massa e densidade. Quanto mais denso um corpo, maior sua atração gravitacional e maior a distorção que causa no espaço à sua volta. Para Einstein, o espaço deixou de ser apenas palco e virou ator também.

Mas mesmo para Einstein o espaço vazio ainda seria o espaço sem qualquer objeto material e, portanto, com geometria plana. Com a física quântica, houve uma nova mudança na compreensão do que seria o "vazio". No mundo dos átomos e das partículas subatômicas, tudo existe num estado de agitação constante: um elétron nunca para no mesmo lugar. Portanto, sempre haverá algum movimento.

Existe uma probabilidade de que mesmo no espaço vazio, uma flutuação de energia possa criar partículas de matéria. A física quântica permite uma violação temporária da conservação de energia.

Partículas podem aparecer do espaço vazio (ou vácuo), contanto que se desintegrem outra vez, numa dança constante de criação e destruição.

Ou seja, de acordo com a física quântica, o espaço vazio não existe. Há um vácuo pleno de flutuações de energia capazes de criar partículas de matéria, mesmo que por apenas alguns instantes. O espaço vira uma coisa que pode criar.

domingo, 30 de outubro de 2011

Dexter entre a ciência e a religião




Na série de TV, um mata em nome de Deus, e o outro, em nome da sua justiça pessoal; ambos estão errados


Imagino que muitos de vocês conheçam a popular série da Showtime chamada "Dexter", agora no seu sexto ano. Se não conhecem, não tem problema: aqui vai um resumo.

Imagine um assassino justiceiro, que mata apenas os criminosos. Na série, Dexter Morgan, representado pelo ator Michael Hall, é adorável, boa gente e trabalha como analista para a polícia de Miami. Sua especialidade é explorar os traços de sangue no local do crime, buscando pistas que levem ao assassino. Ele só mata suas vítimas após conferir que, de fato, são culpadas. O interessante da série é que você acaba torcendo por um assassino que ignora o sistema penal. Sua lógica é: quem assassina uma pessoa inocente merece morrer. Ponto.

A cada ano, Dexter confronta assassinos diversos, cada qual com suas características. A diferença é que Dexter conseguiu domar o seu "passageiro negro," o instinto assassino que o faz matar outros seres humanos. Se não o domou, conseguiu converter uma força destrutiva numa força positiva (que busca um senso de justiça).

Nesta temporada, Dexter, um ateu que baseia suas ações em decisões racionais, confronta pela primeira vez a fé e suas dúvidas. Os assassinos agem em nome de Deus, ou assim acreditam, recriando os eventos descritos no Apocalipse de João, último livro do Novo Testamento. O show é uma paródia dos inúmeros assassinatos em nome da religião, tema que discuti com Frei Betto no livro "Conversa sobre a Fé e a Ciência" (Ed. Agir, 2011).

Numa conversa entre Dexter e o irmão Sam, um ex-criminoso que virou pastor e que ajuda outros criminosos a encontrar o caminho do bem, a essência do confronto é esclarecida. Diz o irmão Sam: "Não posso provar para você que Deus existe. Mas a ciência não pode provar que Ele não existe". Ou seja, para os que têm fé, Deus só pode ser encontrado além do plano de ação da ciência, baseado numa metodologia dedutiva. Já um ateu reverteria o argumento dizendo: "Se você está tão certo de que Deus existe, então prove. Não vejo evidência".

No cerne do argumento encontramos uma incompatibilidade fundamental entre o discurso da ciência e os da fé. O irmão Sam já disse: para os que acreditam em presenças sobrenaturais no mundo, o discurso científico tem pouco a dizer sobre a existência de Deus. Eles tomam antibióticos e mandam e-mails com seus iPads, mas param por aí.

Seria de esperar que alguma espécie de coexistência pacífica pudesse ser encontrada, em que o crente e o descrente concordassem em não concordar. Se você acredita em Deus, vá em frente. Se não, vá em frente também. Infelizmente, as muitas questões nas quais a religião pode influenciar decisões políticas, educacionais e sociais não permitem essa coexistência inocente. A separação entre Igreja e Estado deveria tomar conta disso, mas, infelizmente, não é o caso.

Não sei o que vai ocorrer na série. Ao usar assassinos que são fanáticos religiosos, os autores estão tomando partido. Por outro lado, Dexter também é um assassino, mesmo se ateu. Um mata em nome de Deus, o outro em nome de uma justiça pessoal. Ambos estão errados. Espero que ao menos na TV algum meio-termo seja atingido. Ficaria decepcionado se Dexter virasse religioso.

domingo, 23 de outubro de 2011

O Brasil deve aprender mais ciência






Ao entender os mecanismos da natureza, o homem poderá erguer-se, sem medo, perante a criação

COM FREQUÊNCIA, perguntam -me por que escrevo para o público não especializado. "Isso não toma tempo de sua pesquisa?" A resposta é sim, toma. Porém, para mim -e para outros cientistas que dedicam parte de seu tempo à divulgação científica- apresentar as ideias da ciência à sociedade é mais do que divertido ou intelectualmente estimulante: é nosso dever. E, mais importante ainda, é também vital para o nosso futuro.
Há diversas razões para isso. Aqui posso tocar em apenas algumas delas. Uma é que a ciência é parte essencial da nossa cultura e contribui crucialmente para a nossa visão de mundo. Pense que quando Cabral chegou aqui as pessoas pensavam que a Terra era o centro do cosmo e que nós éramos os escolhidos, criados à imagem de Deus. À medida que a compreensão científica do Universo avançou, nossa percepção de quem somos e de onde vivemos mudou.
A influência científica da nossa visão de mundo não se limita a ideias abstratas. Pelo contrário, nossa percepção da realidade é determinada por inovações tecnológicas. A morte recente de Steve Jobs, o líder da Apple, ilustra claramente como a ciência de ponta, aliada ao design inovador, pode mudar como a sociedade vive e se comunica.
Uma segunda razão se origina ao menos com os Atomistas da Grécia Antiga, se não antes, com Tales e Heráclito no século 6 a.C. Conforme escreveu o pensador romano Lucrécio em seu poema "Sobre a natureza das coisas": as pessoas vivem aterrorizadas porque não compreendem as causas por trás das coisas que acontecem na Terra e no céu, atribuindo-as cegamente aos caprichos de algum deus. Quando finalmente entendermos que nada pode surgir do nada, teremos uma imagem muito melhor de como formas materiais podem ser criadas ou como fenômenos podem ser ocasionados sem a ajuda de um deus.
A razão e a lógica são propostas como antídotos contra medos irracionais, baseados na fé cega em crenças supersticiosas. A ciência é uma consequência direta dessa profunda mudança de atitude: nada de se curvar perante divindades. Ao entender os mecanismos que regem a natureza, o homem poderá erguer-se, sem medo, perante a criação.
A ciência terá um papel cada vez maior no nosso futuro. Tome, por exemplo, a questão das fontes de energia e do aquecimento global. Quais as escolhas que melhor equilibram nossas necessidades e a saúde do planeta? Quais candidatos políticos se alinham com suas escolhas? Ou a engenharia genética e de como as células-tronco podem criar novas curas para doenças que afligem milhões de pessoas. Até que ponto nossas pesquisas devem ir? Até a clonagem humana? Será que a religião deve ter algum papel na decisão de quais pesquisas devem ou não ser financiadas?
Apenas uma população bem informada será capaz de tomar as decisões para um futuro melhor. Por isso, precisamos de mais ciência na mídia, nas escolas, nas nossas comunidades. Se o Brasil quer estar entre as cinco maiores potências mundiais nas próximas décadas, precisará de uma população educada cientificamente, preparada para competir com países que sabem da importância da ciência para o desenvolvimento.

domingo, 16 de outubro de 2011

O filme da sua mente




Supondo que tecnologias capazes de ler a mente se tornem disponíveis, elas exigirão limites jurídicos?


Será que um dia você poderá visualizar os seus pensamentos e torná-los acessíveis em arquivos visuais? Imagine assistir os seus sonhos como se fossem um filme!
Parece coisa de ficção científica, certo? E se outra pessoa (ou o governo) ganhasse acesso ao que ocorre na sua mente? Ou se víssemos o que ocorre na mente de um paciente em coma? As possibilidades médicas são enormes, as complicações éticas também. Supondo que essas tecnologias virem realidade, onde devemos parar? Será que prisioneiros deverão ser submetidos a leituras cerebrais para que o júri possa confirmar o seu veredicto?
Continuamos longe de ver o que ocorre em nossas mentes. Mas não tão longe quanto costumávamos estar. Num experimento recente, voluntários assistiram a videoclipes enquanto sua atividade cerebral era registrada usando ressonância magnética funcional (fMRI). Com os dados coletados, computadores foram capazes de reconstruir parcialmente as imagens que os voluntários viram. Não é o mesmo que ver dentro de suas mentes, mas ver o que suas mentes viam, um feito já bem impressionante.
Como afirmou o cientista cognitivo Jack Gallant, da Universidade da Califórnia em Berkeley, que é um dos autores do estudo, "é um grande avanço para a reconstrução de imagens internas... abrimos uma tela para assistir os filmes que passam em nossas mentes".
Dentre os inúmeros benefícios dessa tecnologia, podemos imaginar o dia em que pessoas deficientes (ou qualquer outra) poderão comandar computadores com suas mentes. No experimento, os voluntários tiveram de ficar sendo escaneados por horas, para que a máquina de fMRI registrasse o fluxo sanguíneo do córtex visual, a região do cérebro que processa a visão.
Num computador, os pesquisadores dividiram o cérebro em pequenos cubos, chamados voxels (pixels volumétricos). A informação dos clipes que chegava ao córtex era medida pelo fMRI, enquanto o computador gravava o tipo e o local da atividade neuronal correspondente a cada imagem, criando um mapa da informação segundo a segundo.
O computador então comparou essa informação com 18 milhões de clipes tirados do YouTube, buscando padrões semelhantes. Os cem mais parecidos eram combinados, e as imagens eram usadas para reconstruir os clipes originais.
Não há dúvida de que esses são apenas os primeiros passos de uma nova tecnologia, e que ninguém pode ainda ver o que se passa na sua cabeça. Dois desafios importantes são a baixa velocidade com que as máquinas atuais de fMRI registram a atividade neuronal (é por isso que a reconstrução é de segundo a segundo) e o tamanho limitado da videoteca usada para comparação.
(Por exemplo, nos 18 milhões de videoclipes do YouTube não havia um com um elefante, de modo que aquela parte da correspondência foi prejudicada.) Porém, como é o caso com novas tecnologias, os primeiros passos podem ser lentos, mas o progresso ocorre mais rápido do que o esperado.
Talvez nossa geração não tenha de censurar nossos sonhos para maridos e mulheres; mas é bem provável que a geração de nossos filhos não terá tanta sorte.

domingo, 9 de outubro de 2011

Celebrando a energia escura




Astrônomos vencedores do Prêmio Nobel em Física nos fazem repensar a relação espaço, tempo e matéria


A energia escura está aqui para ficar. Essa semana foi anunciado o Prêmio Nobel em Física. Venceram três astrônomos que em 1998 descobriram algo surpreendente o Universo não só está em expansão, mas essa expansão é acelerada.
Conforme comentou outro vencedor do Nobel, Frank Wilczek: "esse é o maior mistério da física básica atual". E é mesmo. Quando a descoberta foi anunciada, pouca gente achou que estava correta. Mas, passados 13 anos, os efeitos da expansão acelerada foram comprovados por métodos diferentes.
Quando físicos afirmam que o Universo está em expansão, é comum imaginar que houve uma espécie de explosão, como a de uma bomba, que lança seus detritos em todas as direções. Se fosse assim, o Universo teria um ponto central, de onde tudo surgiu. E a verdade é que nenhum ponto no espaço é mais especial do que outro.
Para visualizar a expansão cósmica, convém imaginar uma tira de borracha em duas dimensões, como um quadrado. Imagine, também, que as galáxias são moedas grudadas à tira.
Conforme a tira cresce nas suas duas direções, as moedas afastam-se umas das outras. Um observador numa moeda vê as outras se afastando dele. Portanto, a expansão do Universo é uma expansão da geometria do espaço: as distâncias entre dois pontos crescem. Esse efeito só é observável a distâncias de milhões de anos-luz.
Para determinar que as galáxias estão se afastando umas das outras, astrônomos precisam medir sua distância e velocidade.
Para a distância, utilizam fontes de luz padrão. Por exemplo, usando lanternas idênticas, e sabendo que a intensidade da luz cai com o quadrado da distância, é possível, num descampado à noite, medir a distância das lanternas até um certo ponto a partir da intensidade da luz que chega a este ponto.
O feito dos três astrônomos foi ter achado uma fonte padrão tão poderosa que sua luz pode ser detectada a bilhões de anos-luz de distância. São as chamadas explosões de supernova do tipo Ia, que ocorrem quando uma estrela suga a matéria da sua vizinha até não poder suportar mais seu próprio peso.
As velocidades são determinadas usando o efeito Doppler, que nos é familiar ao ouvirmos uma ambulância. A distorção do som ocorre devido ao alongamento (quando ela se afasta) ou encolhimento (quando se aproxima) das ondas de som.
O mesmo ocorre com a luz. As galáxias que se afastam têm sua luz deslocada para maiores comprimentos de onda, em direção ao vermelho. Daí o nome "desvio para o vermelho das galáxias", a prova de que o Universo está em expansão.
Os astrônomos mostraram que a partir de 5 bilhões de anos atrás, o cosmo começou a expandir mais rapidamente, como se um tipo novo de matéria (ou energia) dominasse seu crescimento. Essa fonte de energia foi chamada de "energia escura". Não sabemos qual a sua natureza. Talvez esteja relacionada a minúsculas flutuações de energia ou a uma nova força da natureza ligada a um campo desconhecido. Ou, talvez, mostre a necessidade de se modificar a teoria da relatividade geral, de Albert Einstein.
Qualquer que seja a resposta, é certo que nos forçará a repensar a relação espaço, tempo e matéria.

domingo, 2 de outubro de 2011

Einstein errou?



Muitos sonham em desmentir o genial físico alemão; por enquanto, porém, suas teorias, que inspiraram tecnologias como laser e GPS , resistem ao teste do tempo

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Esta semana marcou o 106º aniversário da publicação do artigo de Einstein com a famosa fórmula E=mc2, talvez a mais famosa da física.
Aos 26 anos, Einstein redefiniu nossa compreensão da matéria, mostrando sua íntima relação com a energia. O elo da correspondência é a velocidade da luz, representada pelo "c", com um valor aproximado de 300 mil km/s.
Você pisca o olho e a luz dá sete voltas e meia em torno da Terra. Segundo a teoria da relatividade, nada na natureza pode viajar mais rápido do que a luz: qualquer objeto com massa, de um elétron a um cometa, necessariamente deve viajar com uma velocidade mais baixa do que "c".
Porém, vimos recentemente cientistas dos laboratórios europeus Cern, em Genebra, na Suíça, e Gran Sasso, na Itália, anunciando a detecção de partículas com velocidades maiores que a da luz.

FANTASMAGÓRICAS
As partículas são neutrinos, conhecidas como "partículas-fantasmas" devido à sua fraca interação com a matéria: neutrinos atravessam paredes, pessoas e planetas como se não existissem, apenas raramente colidindo com outras partículas.
Os experimentos começam criando neutrinos no Cern. Depois, eles viajam 730 quilômetros através da crosta terrestre até chegar aos detectores em Gran Sasso.
Embora o porta-voz da experiência tenha afirmado que o processo é simples, que basta dividir distância por tempo para obter a velocidade, na prática a coisa é bem mais complicada. De fato, a maioria absoluta dos físicos vê os resultados com muito ceticismo, duvidando que sobrevivam por muito tempo.
Ou, claro, pode ser que os neutrinos tenham viajado mesmo algumas dezenas de bilionésimos de segundo mais rápido do que as partículas da luz. Mas eu não apostaria nisso.
O que acho interessante é o burburinho que surge cada vez que um cientista crê demonstrar que Einstein errou.
Cientistas têm o dever de testar teorias. Dada a profundidade das teorias de Einstein, achar uma falha numa delas pode revolucionar a nossa compreensão do mundo natural. Esse tipo de ceticismo é vital para o funcionamento da ciência.

MATURAÇÃO LENTA
Muitas vezes, uma teoria demora a maturar. De volta a Einstein, esse foi o caso com a sua teoria da relatividade geral, a que relaciona a atração gravitacional com a curvatura do espaço.
A teoria foi desenvolvida aos poucos, entre 1907 e 1915, até Einstein chegar à sua versão final. Afirmar que Einstein deu passos "errados" no meio do caminho é ignorar o processo criativo dos cientistas; a ciência não anda numa linha reta entre dois pontos. Ela meandra aqui e ali até chegar ao seu objetivo.
Que eu saiba, os resultados principais de Einstein estão todos ainda conosco e continuam a inspirar novas pesquisas, sem falar nas tecnologias "einstenianas" do cotidiano.
Mesmo que, um dia, algumas das ideias de Einstein sejam suplantadas por novas teorias-e isso deve acontecer -, dizer que ele estava errado é no mínimo ingênuo.
Será que podemos dizer que Newton estava errado quando Einstein corrigiu suas teorias? Certamente não! Toda teoria deve ser aplicada dentro do seu limite de validade: julgá-la errada quando aplicada fora desses limites é não saber como usá-la.
O próprio Einstein considerou uma de suas ideias como o "maior dos seus erros", a adição da chamada constante cosmológica às equações descrevendo a geometria do Universo.
Em 1931, Einstein visitou o astrônomo Edwin Hubble no observatório do monte Wilson, na Califórnia, e teve a oportunidade de ver o desvio para o vermelho da luz emitida por galáxias distantes. A interpretação mais imediata desse desvio é a expansão do Universo, isto é, que as galáxias estão se afastando umas das outras a altas velocidades. Em 1917, Einstein havia escrito um artigo onde supõe que o Universo é estático, sem expansão alguma.
Para isso, teve de adicionar a constante cosmológica, que garante a solução estática que queria. O resultado de Hubble mostrou que sua suposição não era necessária.

REVIRAVOLTA
Ironicamente, em 1998, astrônomos descobriram que o Universo está em expansão acelerada, efeito que pode ser causado justamente pela constante cosmológica de Einstein. A natureza tem razões que a razão desconhece.
Outro "erro" de Einstein é sua posição com relação à mecânica quântica, que descreve as partículas da matéria. Ele nunca aceitou que, conforme dizia essa área da física, a realidade tivesse um forte componente aleatório.
Até hoje, nada de anormal foi encontrado com a mecânica quântica. Em defesa de Einstein, não houve aqui um erro, mas uma diferença filosófica na sua visão de mundo. É prematuro julgar se sua posição está certa ou errada.
A lição aqui me parece simples: é bom termos cuidado ao julgar teorias a partir de resultados recentes e com pouco escrutínio. Afirmações extraordinárias requerem provas extraordinárias.
Embora o questionamento constante seja vital para a ciência avance, as trombetas da revolução só devem ser soadas após a revolução ter mesmo começado.

domingo, 25 de setembro de 2011

O Universo e a vida


no Faebook: http://goo.gl/93dHI


A evolução não leva à vida complexa e inteligente: ela leva a formas de vida bem adaptadas ao seu ambiente

SE VOCÊ tem prestado atenção nas últimas notícias sobre ciência, deve ter percebido que está chovendo planeta. (Semana que vem falaremos da suposta descoberta de partículas mais rápidas do que a luz.)

Na semana passada, astrônomos da Universidade de Genebra, na Suíça, descobriram o planeta que mais se parece com a Terra até agora, ao menos em termos da sua massa e posição. O HD85512 b tem massa 3,6 vezes maior do que a da Terra e orbita sua estrela na "zona habitável", região onde a água, se existir, pode ser líquida.

Claro, não sabemos ainda se existe vida no planeta, ou mesmo se ele é rochoso como a Terra. Serão anos até que seja possível analisar, mesmo que superficialmente, a composição de sua atmosfera. Porém, o entusiasmo é justificável: quanto mais planetas semelhantes à Terra forem encontrados, maiores as chances de a vida existir em outro lugar. As descobertas recentes mostram que planetas como a Terra devem existir. Será que o Universo é mesmo propício à vida?

Cientistas acreditam que a vida é comum no Universo devido à regularidade das leis da física e da química. Galáxias distantes se movem segundo as mesmas leis que conhecemos aqui na Terra; suas estrelas e gases são compostos pelos mesmos elementos químicos.

Portanto, é razoável supor que os mesmos processos que levaram a vida a surgir aqui na Terra há cerca de 3,5 bilhões de anos devem ter ocorrido em outras plataformas planetárias. Esse é o argumento da regularidade cósmica.

Mas será suficiente? A suposição é que, se a física e a química são as mesmas, a biologia também será. Quando pensamos em vida extraterrestre, estamos implicitamente supondo que ela obedece à teoria da evolução por seleção natural de Darwin. Claro, só saberemos se esse é mesmo o caso quando obtivermos uma amostra de vida alienígena e estudarmos suas propriedades e composição genética. Porém, é difícil imaginar que os princípios dar-winistas não se aplicarão.

Mas isso nada diz sobre as particularidades das formas de vida. Quando falamos de vida extraterrestre, é fundamental distinguir entre vida unicelular e vida multicelular. Ao contrário do que muitos supõem, a evolução não leva da vida unicelular à vida complexa e inteligente: ela leva a formas de vida bem adaptadas ao seu ambiente.

Aqui na Terra, durante 2,5 bilhões de anos, a vida se resumiu a seres unicelulares. As transições que levaram da vida unicelular à vida multicelular complexa foram muitas e são ainda pouco compreendidas: de células simples a células com o material genético isolado, como as nossas; daí a seres multicelulares; deles, a criaturas com órgãos diferenciados, mas cuja funcionalidade é integrada.

O que aprendemos com o único exemplo que conhecemos é que a história da vida num planeta depende completamente da história geológica desse planeta (ou lua). Se pudéssemos mudar um evento importante na nossa história, digamos, a colisão com o asteroide que exterminou os dinossauros, a história da vida terrestre teria sido outra. Provavelmente, não estaríamos aqui. Do que vemos até agora, a Terra permanece uma joia rara no cosmo. E merece nosso respeito e cuidado.

MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor de "Criação Imperfeita".
Facebook: http://goo.gl/93dHI
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domingo, 18 de setembro de 2011

Quando começa a vida?




A primeira batida cardíaca marca o início de uma integração sistêmica, a comunicação entre órgãos


Minha esposa está para ter um bebê a qualquer momento. Aliás, quando você ler essa coluna, é muito possível que o bebê já tenha nascido. Inspirado por isso, nas últimas 39 semanas venho ponderando a questão do início da vida.

Quando, exatamente, a vida começa? Não me refiro ao início da vida na Terra, algo que pesquiso em meu trabalho, mas ao começo da vida de um indivíduo humano, esse tópico controverso que alimenta a grande polêmica entre quem é contra ou a favor do aborto.

Como sou físico e não médico ou especialista em bioética, apresento apenas algumas possibilidades que, espero, incitem mais debates.

Começando do começo: na concepção, temos a junção do espermatozoide e do óvulo. O zigoto é resultado do abraço bioquímico de 46 cromossomos, 23 do pai e 23 da mãe.

É possível argumentar que a vida começa antes da fertilização. Se o esperma "nada" em direção ao óvulo, há um propósito. Mas podemos equacionar vida com um propósito?

Após a fertilização, o zigoto implanta-se na parede uterina e começa a se desenvolver. Este é o blastocisto, de onde as células-tronco podem ser extraídas. Uma incrível dança hormonal ocorre. Após cinco semanas, há um tubo neural e primórdios de coração e outros órgãos. Começa aqui o período embrionário.

Em seis semanas, a coisa acelera: o embrião pode mover suas costas e pescoço. O batimento cardíaco passa a ser detectado via ultrassom em torno de seis semanas. Há fontes que colocam o início do pulso cardíaco ainda antes, em torno de três semanas após a concepção.

Essa transição é, para mim, fantástica. Um amontoado minúsculo de células já tem um sistema nervoso primitivo, que ordena um coração primitivo a pulsar! Como, exatamente, isso ocorre? A primeira batida cardíaca marca a transição entre algo em que células estão se dividindo para algo em que existe uma integração sistêmica, órgãos se comunicando. É aqui que começa?

Em oito semanas, o embrião tem "tudo" de um adulto. É o início da fase fetal, um ser proto-humano, ou já humano, com um coração e cérebro. Por outro lado, sua sobrevivência depende da placenta.

Outra transição acontece quando o feto pode sobreviver independentemente da mãe. Mas quando isso ocorre?

Devido aos avanços na medicina neonatal, 80% dos bebês prematuros de 26 semanas conseguem hoje sobreviver. Com o avanço da tecnologia, essa sobrevivência será ainda maior.

Portanto, essa transição depende da tecnologia.

Finalmente: quando surge o consciente? No útero, no nascimento ou durante a infância? Deixando de lado a questão de como definir o consciente, eletroencefalogramas de fetos no 3º trimestre já revelam uma integração entre os dois hemisférios cerebrais, uma condição importante para a formação do consciente.

Talvez seja o choque do nascimento, quando o bebê é forçado a respirar por si só e a interagir com um ambiente completamente diverso, que desperta o consciente. Ou talvez não exista uma resposta para essa questão, apenas interpretações do que significa vida em estágios diversos de desenvolvimento.

De qualquer forma, tenho de terminar isso, pois preciso arrumar o quarto do bebê que está por vir.

domingo, 11 de setembro de 2011

O que é unidade?







Ao refletir sobre unidade, vale lembrar que somos feitos da mesma matéria: pessoas, plantas e rochas


Hoje, nos EUA, é um dia lúgubre, o aniversário de dez anos do ataque terrorista que destruiu as Torres Gêmeas em Nova York e danificou parte do Pentágono. O número de vítimas chegou a 2.977: pessoas de todas as idades, raças e credos.

Entre as várias discussões sobre o que ocorreu e os seus motivos, gostaria de meditar aqui sobre o que mais falta no mundo: unidade. No fim de semana passado, recebemos em casa a artista russa Ekatherina Savtchenko (para ver seu trabalho, visite www.ekatherinas.com). Savtchenko usa a sua arte para transmitir uma forte mensagem de unidade, conectando várias culturas e fés com aspectos diversos do conhecimento humano, incluindo a ciência. Ela é parte da Unity Foundation (Fundação Unidade), um grupo ainda pequeno de pessoas dedicado a encontrar um denominador comum e inspiração dentre as tantas vozes do mundo.

Parte das atividades da fundação é coletar depoimentos de pessoas, registrados em vídeo, sobre sua visão do que é unidade. O objetivo é explorar vários significados da palavra e entender a sua essência. Quando chegou a minha vez e a câmera apontava na minha direção, tive de pensar rapidamente sobre o que entendo por unidade. Imediatamente, a noção de conectividade me veio à mente.

A ciência, em particular a física, influencia o que entendo por unidade. No seu aspecto mais básico, essa conectividade -que a tudo e todos liga-vem da unidade que vemos nas leis da natureza. Através do espaço e do tempo, por bilhões de anos-luz de distância e bilhões de anos, podemos afirmar com confiança que as mesmas leis da física e da química são válidas.

Vemos estrelas a bilhões de anos-luz de distância, estudamos os seus espectros e concluímos que esses objetos, tão longínquos, muitos deles já nem mais existentes, contêm hidrogênio, hélio e muitos dos mesmos elementos químicos que encontramos na Terra e em nossos corpos.

Vemos, também, que essas estrelas produzem seu brilho da mesma forma que o nosso Sol, transformando hidrogênio em hélio em seu centro, através da fusão nuclear. Somos todos feitos da mesma matéria: pessoas, plantas, rochas, estrelas.

As leis da natureza conectam o Universo, trazendo-o até nós. Mas que leis são essas? De onde vêm? Aqui, a ciência tem pouco a dizer. As leis da natureza são, em realidade, nossa interpretação do que vemos da natureza, consequência do que medimos do mundo. Elas expressam padrões de comportamento que identificamos através do espaço e do tempo, padrões que podemos quantificar e comparar com medidas e observações.

Como criadores dessas leis, nossa conexão com o Cosmos vai além da nossa composição material em comum: ela existe, também, por meio das nossas mentes, ao mapearmos na consciência aquilo que, sem nós, passaria desapercebido.

Como escrevi em meu livro "Criação Imperfeita", somos como o Universo pensa sobre si mesmo. Termino sugerindo uma montagem em vídeo em que Richard Feynman, Carl Sagan, Bill Nye e Neil deGrasse Tyson "cantam" sobre a unidade da natureza e nossa conexão com o cosmo. (Assista no link: http://www.youtube.com/watch?v=XGK84Poeynk&feature=youtu.be
)

MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor de "Criação Imperfeita".
Facebook: http://goo.gl/93dHI


 

domingo, 4 de setembro de 2011

Você comeria carne de proveta?




Quem tiver problemas em comer carne produzida em laboratório deveria visitar um matadouro



Imagine que um dia você vai ao supermercado e encontra, junto aos cortes usuais de carne e galinha, carnes produzidas em laboratório.

Um pouco adiante, vê filés de peixe, também criados artificialmente. Um rótulo amarelo distingue os dois tipos de carne: "natural" e "artificial". Qual você escolheria?

Mesmo que cientistas garantam que não há diferença hormonal, nutricional ou molecular entre os dois tipos de carne, tenho certeza de que a maioria escolheria carnes naturais. Por que isso?

Pode ser por ecos do que chamo de Síndrome de Frankenstein, o medo irracional de que a ciência foi mais longe do que deveria. Porém, se podemos cultivar vegetais, por que não carnes?

Se isso parece coisa de ficção cientifica, pense de novo. Dezenas de laboratórios estão tentando cultivar carne, partindo de amostras de células musculares (que é o principal do que comemos na carne) alimentadas em soluções que induzem a sua proliferação. Em 1999, o holandês Willem van Eelen registrou patentes internacionais da "produção industrial de carne usando culturas celulares".

Após muito esforço, van Eelen convenceu o governo holandês a financiar projetos de pesquisa em três universidades, visando aprimorar o desenvolvimento de tecido muscular em laboratório.

"Se bilhões de pessoas parassem de comer animais, que ótimo seria oferecer-lhes carnes obtidas sem o horror do matadouro, dos caminhões, das mutilações, da dor e do sofrimento causados pela produção industrial de carnes", afirmou Ingrid Newkirk, cofundadora e presidente da fundação Peta (Pessoas pelo Tratamento Ético de Animais).

Imagino que Newkirk seja a inimiga número um dos produtores de carne. De minha parte, escrever estas linhas reafirma meu compromisso em ser vegetariano.

Fora as vantagens éticas, existem inúmeras vantagens ambientais: a agropecuária consome quantidades enormes de recursos naturais, da água à energia, fora o desmatamento incluído no pacote.

Quem tiver problemas em comer carnes feitas em laboratório deveria visitar um matadouro e comparar os dois.

Portanto, a possibilidade parece ser óbvia. Supondo que a carne in vitro seja uma realidade num futuro próximo, quantas pessoas estariam dispostas a comê-la? Note que o processo não envolve qualquer manipulação genética, não tendo nada de transgênico.

A questão envolve a credibilidade da ciência e a sua percepção popular. Quem vai acreditar nos cientistas que trabalham para a indústria de carnes artificiais?

Como temos visto com a questão do aquecimento global, os dias em que pessoas equiparavam ciência à verdade já estão longe.

As coisas se complicam quando os cientistas trabalham para empresas privadas. Pense na diferença entre o depoimento de um especialista em câncer de um hospital e o de outro que trabalhe para uma indústria de cigarros.

Por outro lado, dado que o consumo mundial de carne é de 285 milhões de toneladas por ano, o potencial econômico é gigantesco, mesmo que só uma fração do público esteja disposta a comer carne de proveta.
Alguns cientistas creem que essa seja a solução para o problema da fome mundial: carne artificial, barata e nutritiva. Outros querem só ganhar dinheiro.

Espera-se que cientistas do governo informem o público das vantagens e desvantagens da carne artificial. Enquanto isso, talvez seja hora de você repensar seus hábitos alimentares.

domingo, 28 de agosto de 2011

Definindo o Universo




O Universo não é uma 'coisa' como uma estrela; estudá-lo significa analisar tudo o que detectamos dentro dele

O que é essa coisa que chamamos de Universo? Parece uma daquelas perguntas triviais. Um cínico já diria: "E eu com isso, ora? Tenho mais o que fazer!"

Na realidade, entender a natureza do Universo é entender quem somos e como nos encaixamos no mundo. Para ver isso, basta considerar como uma pessoa do século 16 pensava o Cosmos. A Terra, inerte, era o centro da criação e tudo girava à sua volta: Lua, planetas, estrelas, cada qual levado por uma esfera cristalina. O Cosmos era esférico e finito como uma cebola. Após a última esfera celeste, a esfera das estrelas, encontrava-se outra: a Primum Mobile. Sua função era dar movimento a todas esferas internas.

Além dela estava o Empíreo, a parte do céu sob domínio de Deus e suas criaturas divinas. Uma hierarquia vertical definia a vida das pessoas: os virtuosos poderiam finalmente ascender ao céu. A geometria cósmica e o destino dos mais pios eram indissolúveis.

Tudo mudou quando Copérnico e, mais dramaticamente, Galileu, Kepler, Descartes e Newton estabeleceram o Cosmos heliocêntrico. Newton, em particular, afirmou que apenas num Universo infinito o colapso gravitacional poderia ser evitado. Num Universo infinito, a verticalidade que havia definido a busca espiritual das pessoas se perdia. Mesmo assim, o Cosmos newtoniano permaneceu estático.

Quando chegamos a Einstein no século 20, as coisas ficaram mais sutis. O espaço e o tempo formam uma entidade única, o espaço-tempo.

Essa matriz quadridimensional é dinâmica, respondendo à distribuição de matéria e energia.

Com Einstein, o espaço e o tempo ganharam plasticidade. Estudar o Universo não significava apenas estudar o que existia no Universo, mas o Universo em si. A separação entre o Universo e as coisas que ele contêm não era mais possível.

Como, então, definir o Universo? Uma primeira resposta seria "o conjunto das coisas que existem no volume de espaço que podemos medir".

Que coisas? Galáxias, estrelas, planetas, aglomerados de galáxias, buracos negros, enfim, os objetos que detectamos com nossos instrumentos, determinando suas propriedades físicas, como massa, composição química e rotação.

Existem também coisas que medimos e não sabemos ainda o que são, como a matéria e a energia escura. E, também, coisas que ainda não sabemos existir. Mas o Universo é mais do que o conjunto das coisas que ele contêm, certo?

O Universo não é uma "coisa", da forma que uma estrela é uma coisa. Medimos propriedades que atribuímos ao Universo, como as flutuações de temperatura da radiação cósmica de fundo ou a taxa de expansão cósmica. Mas essas medidas são de coisas que existem no Universo. A inferência que esse afastamento representa a expansão do Universo vem a posteriori, no contexto da teoria de Einstein que mostra que a geometria cósmica pode se expandir ou ser contraída.

Será, então, que o Universo é a solução da equação obtida da teoria de Einstein? Não, porque para obtermos essa equação e suas soluções fazemos uma série de aproximações. Não devemos cair no erro de equacionar um modelo com a coisa que ele modela. O Universo é mais um conceito do que uma coisa.

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domingo, 21 de agosto de 2011

Escolheremos a graça ou a natureza?




O filme "A Árvore da Vida" nos coloca entre o caminho da graça e da natureza; não temos de fazer essa escolha


NA SEMANA passada assisti ao filme "A Árvore da Vida", de Terrence Malick. Se existe um gênero de cinema dito metafísico, esse filme é um exemplo perfeito. Algumas das questões mais profundas que foram (e são) feitas no decorrer da história reaparecem aqui, em meio à tribulada vida de uma família de classe média americana da década de 1950.


Malick nos lembra que o sublime e o trágico usam vários disfarces, alternando cenas de beleza numa rua comum com cenas pesadas.

O tema central do filme é a perda e nossa relação com ela. Malick contrasta a fragilidade humana com o esplendor dramático da natureza, inserindo uma narrativa da criação que começa com o Big Bang, mostra estrelas nascendo em gigantescas e coloridas explosões, a própria Terra surgindo, o desenvolvimento de criaturas e plantas multicelulares, a era dos dinossauros, até chegarmos ao nascimento de Jack, o filho mais velho da família O'Brien.

Com isso, Malick nos insere no épico da criação, mostrando que a história cósmica é a nossa história.
As imagens e a música evocativa (Mahler, Brahms, Couperin, Berlioz, e o tema original de Alexandre Desplat) nos induzem a ver o Universo, a vida e a humanidade como manifestação de um Deus Spinoziano, em tudo e em todos, transcendente.

No decorrer do filme, testemunhamos vários tipos de perda. O'Brien e sua esposa têm três filhos. Jack é o pivô dramático do enredo, sofrendo constantemente da ira do pai frustrado, que se mescla com um afeto violento. O'Brien queria ter sido músico, mas acaba numa fábrica, talvez como engenheiro.

Fora a fúria paterna, Jack tem de lidar com a superioridade do irmão mais novo, R. L., que toca violão e desenha muito bem, além de ser mais bonito. Nos ciúmes e adoração que Jack sente pelo irmão, vemos a luta que todos temos com nossas limitações. Lembrei-me da angústia de Salieri ao se deparar com o gênio de Mozart em "Amadeus".

Já a mãe é uma criatura em constante êxtase beatífico, uma mística que ama a natureza com fervor religioso: "Ame a todos e a tudo. Ame cada folha, cada raio de luz".

A paz (relativa) familiar é destruída quando R. L., o filho, é morto no Vietnã aos 19 anos -algo que vemos no início do filme.

A narrativa vai e volta no tempo, e vemos Jack adulto (Sean Penn), dentro de um prédio moderno em Dallas que parece um sarcófago, olhando para fora e perguntando "Onde você está?" ao seu irmão e a Deus. O filme usa muita narração sussurrada, como se fossem preces. Malick transforma a sala de projeção em templo: o cinema sacro.

O filme nos coloca entre "o caminho da graça e o caminho da natureza". Graça no sentido cristão de generosidade, humildade e bondade, de uma força interna imune a todo o tipo de barreira, ancorada na nossa humanidade. Sem nós, a graça não existe. Já a natureza é indiferente, avança resolutamente, criando e destruindo sem um objetivo final. Nós, frágeis humanos, estamos tentando compreender o significado de nossas vidas. Uma morte prematura é indesculpável.

Não precisamos escolher entre a graça e a natureza. Existe uma terceira via, em que encontramos graça na natureza, não apenas através de sua beleza e cada folha e raio de luz, mas por meio da nossa profunda conexão com ela.

O que matou o pai, figurativamente, mesmo antes da morte do filho, foi ter se distanciado do sentido de graça, da conexão profunda com o que nos cerca, vivo ou não.

Espero que, das várias mensagens do filme de Malick, uma que perdure seja que graça e natureza constituem um todo indissolúvel.

Afinal, aqui estamos, criações cósmicas que somos, capazes de inventar o conceito de graça e de viver inspirados por ele. Dedico esse texto à minha amiga Ciça Guimarães.


MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "Criação Imperfeita"

domingo, 14 de agosto de 2011

O futuro da corrida espacial




Ficarmos presos na Terra, sem explorar o Universo pelas missões espaciais, é como negar o nosso destino


Eu tinha dez anos quando, no dia 20 de Julho de 1969, Neil Armstrong pousou na Lua e declarou: "Um pequeno passo para um homem, um salto gigante para a humanidade".

Suas palavras marcavam uma nova era da exploração espacial, semelhante ao que ocorrera aqui na Terra alguns séculos antes, quando estendemos nossa presença aos confins do nosso planeta.

Avançando para 2011, muita coisa mudou. Ainda não temos uma base lunar e, de fato, não pousamos mais na Lua há quase 40 anos. Voos espaciais tripulados são caros e, claro, arriscados.

Entretanto, nos EUA, o presidente Obama permanece firme em sua determinação de enviar humanos ao espaço, conforme afirmou em discurso feito em abril deste ano:

"Em 2025, teremos novos tipos de espaçonaves para enviar humanos ao espaço distante. Enviaremos astronautas até um asteroide. Até meados de 2030 acredito que humanos entrarão em órbita de Marte. Espero ainda estar por aqui para ver".

Para as pessoas da minha geração, missões tripuladas são inevitáveis. Ficarmos presos na Terra é negar o nosso destino. Não sei o que a geração mais nova pensa sobre o assunto. Mas tenho certeza de que muitos dirão que é hora de irmos em frente, de realizarmos sonhos novos. Mas que sonhos são esses?

Nos EUA, o interesse de muitos políticos na corrida espacial é financeiro: manter milhares de empregos abertos para o seu eleitorado. Juntamos a essa motivação o sonho de ir aonde nunca fomos, de explorar os confins do Cosmos, talvez até semeando a vida em novos mundos. Será essa a nossa missão? Espalhar vida inteligente galáxia afora?

Temos também os cientistas, que tendem a preferir missões robóticas mais baratas e em maior número, feitas para cobrir a pesquisa nas mais diversas áreas da astronomia, da astrofísica e da planetologia. Finalmente, temos a privatização da exploração espacial (hotéis e turismo espacial) e a possibilidade de que várias nações e grupos privados tenham interesses econômicos além da Terra, o que já ocorre.

Se quisermos maximizar a relação custo-benefício da exploração espacial, missões robóticas são mais eficientes. Mesmo que seja verdade que um astronauta em Marte teria feito o que as sondas Spirit e Opportunity fizeram em um tempo muito mais curto, a verdade é que não temos o dinheiro ou a tecnologia para enviar humanos até lá.

Não sabemos como nos proteger da radiação letal que existe no espaço nem como evitar o declínio dos músculos por lá. Precisamos de mecanismos de propulsão mais fortes.

Mais importante ainda: precisamos de uma organização internacional dedicada à exploração.

O futuro da exploração espacial tem de ir além das fronteiras e da propaganda patriótica que marcou a sua história até aqui. Ao deixarmos nosso planeta, o faremos como uma espécie e não como indivíduos de um ou outro país.

domingo, 7 de agosto de 2011

O bom, o mau e o feio

MARCELO GLEISER

O bom, o mau e o feio


O desafio da globalização será reinventar nossa natureza tribal; queremos viver sem bandeiras?


Será que a globalização, essa força que anda redefinindo o mundo, melhorará ou piorará as coisas? De um lado, vemos o mundo encolher com maior acesso à internet e com o aumento da eficiência e velocidade dos transportes e da intensidade do comércio internacional. De outro, nosso tribalismo desconfia de culturas diferentes e reage negativamente a valores externos.
Há muito tempo futuristas preveem que o desenvolvimento tecnológico deixará o mundo cada vez mais homogêneo. Considere, por exemplo, o livro do físico Mikio Kaku "A Física do Futuro", continuação de outros semelhantes que ele escreveu.
Ele entrevistou 300 cientistas para criar uma visão utópica de um mundo definido pela ciência. Em 2100, diz, computadores inteligentes trabalharão com humanos, o acesso à internet será por lentes de contato e moveremos objetos com o pensamento; nanorrobôs destruirão células de câncer, a propulsão a laser redefinirá as viagens espaciais e colonizaremos Marte. Não haverá barreiras comerciais, e a mesma cultura e os mesmos alimentos serão divididos por todos. Essa homogeneização da sociedade acabará com as guerras.
Essas maravilhas tecnológicas são extrapolações do que já temos. Se alguém tivesse previsto que em 2010 teríamos laptops capazes de baixar remotamente gigabytes de informação ninguém acreditaria. O difícil é prever o inesperado.
Recentemente, o cientista político Pankaj Ghemawat, professor de estudos estratégicos da Universidade de Navarra, em Barcelona, Espanha, publicou um livro em que critica o excesso de otimismo com relação à globalização.
Segundo ele, valores que tendem a diluir barreiras culturais vão contra a nossa natureza tribal. O autor mostra que a maior parte de nossas relações permanece local: o correio internacional é apenas 1% do total, telefonemas internacionais são menos de 2% e tráfego internacional na internet representa entre 17% e 18% das informações da rede.
O fundamentalismo é uma reação à essa tendência homogeneizante. Quando valores externos ameaçam aqueles em que você e seus antepassados baseiam suas vidas, existem duas opções: ou você os absorve a um maior ou menor grau ou você se rebela e se fecha ainda mais, reagindo agressivamente à qualquer tipo de "intrusão".
Além de nossas famílias, nossa rede de interação social e cultural é baseada na aliança a certas tribos: Palmeiras ou Corinthians, brasileiro ou argentino, branco ou negro, católico ou muçulmano etc. A troca de ideias enriquece, mas a sua homogeneização empobrece.
Muitas das extrapolações tecnológicas que Kaku e outros descrevem estão chegando. Questões relativas a cultura e mercado são mais sutis. Não há dúvida de que barreiras comerciais continuarão a cair e que a globalização fará com que bens sejam acessíveis a um número cada vez maior de pessoas.
O desafio será reinventarmos nossa natureza tribal. Será que podemos (ou queremos) viver sem bandeiras? Se não aprendermos a respeitar as nossas diferenças, criando uma atmosfera de troca de informações e culturas, o sonho de um mundo melhor pode se transformar num pesadelo nada utópico.

MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "Criação Imperfeita"

domingo, 31 de julho de 2011

Em busca de significado




A ciência nos ensina sobre a nossa íntima relação com o Universo: a matéria da qual somos feitos é também a de estrelas, planetas e luas

AQUI NA coluna, abordamos tanto questões mais imediatas, como o aquecimento global e a crise energética, como as mais fundamentais, como o significado do tempo e o debate entre a ciência e a religião.

Hoje, gostaria de abordar uma questão que, a meu ver, está no cerne do antagonismo entre a ciência e a religião: será que o desenvolvimento científico criou um vazio espiritual? Será que a ciência só serve para gerar fatos e dados sobre o mundo natural?

Ou será que pode ir mais fundo, talvez criando uma nova forma de espiritualidade?
Para começar, cito meu livro "O Fim da Terra e do Céu":

"O desenvolvimento da ciência nos séculos 18 e 19, baseado na interpretação racional dos fenômenos naturais, foi seguido, ao menos no Ocidente, por um abandono progressivo da religião. O conforto espiritual encontrado na fé foi gradualmente abandonado, em nome de um sistema de pensamento secularizado. O historiador da religião S. G. F. Brandon expressou claramente tal preocupação quando escreveu: 'Para os pensadores do Ocidente, nenhuma missão pode ser mais urgente do que a resolução desse dilema, se possível produzindo uma filosofia da história adequada, isto é, que justifique o sentido da vida dos homens dentro de sua duração temporal finita'."

Logo a seguir, pergunto se, ao vermos a ciência além de seu papel de quantificadora da Natureza, podemos talvez encontrar ao menos parte desse "sentido": "Talvez fosse isso que Einstein tinha em mente quando introduziu o seu 'sentimento cósmico religioso', a inspiração essencialmente religiosa por trás do ato racional de compreendermos o Cosmos. A ciência e a religião nascem das mesmas ansiedades que torturam e inspiram o espírito humano. E a conexão entre as duas é a nossa existência finita em um Cosmos aparentemente infinito".

Obviamente, o tempo também complica as coisas, pois a perda dos que amamos e a nossa própria mortalidade são causas de muita dor.

Nessas horas, encontro consolo em muitas coisas. Mas uma das mais significativas é o que a ciência nos ensina sobre nossa íntima relação com o Universo: a matéria da qual somos feitos é também a matéria das estrelas, dos planetas e de suas luas, e de todos os seres vivos.

O tempo que usamos para descrever as transformações que experimentamos é o mesmo da expansão cósmica. O tempo passa para o Universo também. Como escreveu o naturalista americano John Muir, "ao movermos uma única coisa na Natureza, descobrimos que ela está presa ao resto do Universo".

Não existe uma solução única para os nossos anseios. Não sei onde você encontra sentido para a sua vida. No meu caso, a busca se desdobra em muitas trilhas.

Ao tentar entender um pouco mais sobre os mistérios do mundo natural; na convivência com minha família e amigos; em saber que sou um ser humano no nosso raro planeta Terra. Para mim, o sentido não está na ciência em si, mas na busca pelo conhecimento. Talvez seja assim também com um músico, que dá sentido à sua busca tocando o seu instrumento. As técnicas nos dão os meios, mas não são um fim em si mesmas. É tocar, e dividir a música com os outros, que importa.



domingo, 24 de julho de 2011

Conversa sobre o nada





A física quântica leva à conclusão de que o nada, no sentido de ausência de tudo, não existe


O nada, por incrível que pareça,vem ocupando a imaginação de filósofos e cientistas há milênios. Coisa simples, não é? Imaginar a ausência de tudo, o vazio absoluto, não deve ser tão complicado. Grande engano. Se a ideia do nada como a ausência total de matéria é trivial, quando pensamos um pouco mais sobre o assunto, a coisa complica.

Foram os atomistas Leucipo e Demócrito, na Grécia do século 5 a.C., que tiveram uma grande sacada: e se o cosmo contivesse duas coisas, os átomos que constituem a matéria e o vazio onde se movem? Com isso, na ausência de um átomo, existe apenas o espaço vazio. 


Aristóteles, um século mais tarde, descartou a ideia. Para ele,o espaço vazio era uma impossibilidade. Existe sempre algo preenchendo o vazio, que ele chamou de "éter". Caso contrário, ponderou, objetos poderiam atingir velocidades infinitas, algo que não parecia possível. 


As ideias sobre o vazio de Aristóteles, Mesmo que transformadas, retomaram força com o francês René Descartes no século 18. Para ele, o vazio também não existia. Uma forma de matéria fluida preenchia o espaço. 


Para explicar as órbitas dos planetas em torno do Sol ou da Lua em torno da Terra, descartes supôs que esse fluido, ao girar, criava uma espécie de redemoinho que levava os planetas em suas órbitas. 


Newton, um pouco mais tarde, demonstrou matematicamente que o espaço não pode ser preenchido por um fluido: sua viscosidade faria com que os planetas espiralassem sobre o Sol. O nada voltou a existir.


Quando, no século 19, foi descoberto que a luz é uma onda eletromagnética, a questão do meio material em que essa onda se propagava veio à tona. Afinal, ondas de água se propagam na água, ondas de som no ar. Qual o meio em que as ondas de luz viajavam? Foi sugerido que o espaço, afinal, não era vazio; existia uma espécie de fluido que permitia a propagação das ondas de luz. Em 1887, porém, um experimento que visava confirmar a existência do éter falhou. A luz e a sua propagação se tornaram um grande mistério, que só foi resolvido em 1905, quando Einstein propôs que a luz não precisava de meio algum para se propagar. O nada voltou, triunfante. Mas não por muito tempo. 


Na década de 1920, com a mecânica quântica, a física que estuda os átomos e partículas, ficou claro que conceitos do nosso dia a dia precisavam ser revisados radicalmente. Entre eles, a noção de que objetos podem ficar parados. 


No mundo dos átomos, tudo vibra incessantemente. Com isso, sempre existe uma energia residual, cujo valor flutua aleatoriamente. Juntando isso ao fato de que a energia e a matéria estão intimamente relacionadas, flutuações de energia são convertidas em partículas de matéria.


Dadas as flutuações de energia,partículas de matéria podem surgir do nada. A física quântica leva à conclusão de que o nada, no sentido de ausência de tudo, não existe.


Em1998, essa história ganhou um novo capítulo. Foi descoberto que o Universo está em expansão acelerada. 


Entre as explicações sugeridas para isso, a mais plausível é que o efeito seja gerado pela energia do vazio, as tais flutuações quânticas. 
Nesse o caso, o nada, ou sua versão quântica, é responsável pelo destino do nosso Universo. 


domingo, 17 de julho de 2011

Aquecimento: guia para os perplexos

Mesmo que o clima da Terra tenha oscilado em seu passado, o aquecimento dos últimos cem anos está ligado aos gases poluentes Discussões sobre o aquecimento global geram posições bastante polarizadas.

Uma das causas, fora a manipulação da opinião pública por grupos de interesse, é uma certa confusão com relação a fatos básicos sobre a ciência do clima.

Por isso, apresento um breve resumo do que sabemos e do que não sabemos a respeito. Claro, o espaço aqui permite apenas que toque em alguns dos pontos mais importantes. Mas espero que ajude.
1)A Terra é um sistema finito, que recebe a maior parte de sua energia do Sol. Outra fração vem do decaimento de isótopos radioativos e da liberação de calor do núcleo.
2)O Sol emite radiação principalmente no espectro visível, correspondendo à cor amarela. Parte da radiação é refletida ao espaço e parte é absorvida e refletida perto da superfície. Um carro, estacionado sob o Sol com as janelas fechadas, fica bem mais quente.
3)A retenção do calor se dá devido a certos gases, responsáveis pelo efeito estufa: vapor d'água, dióxido de carbono, metano e ozônio. Sem a ação deles, a Terra seria 33 graus Celsius mais fria.
4)Nos últimos cem anos, a temperatura global aumentou em 0,74 grau Celsius. O nível do mar aumentou uns 20 cm.
5)Esses dados não estão em disputa. O que é controverso é a causa dos aumentos: natural ou antropogênica, ou seja, causada pela atividade humana.
6)A Terra passou por muitos períodos de aquecimento no passado. Evidências extraídas de amostras de gelo na estação russa Vostok, na Antártica, permitiram que se estabelecesse uma relação direta entre o aumento da concentração de gás carbônico na atmosfera e a temperatura nos últimos 400 mil anos. As temperaturas máximas correspondem a uma concentração do gás de 280 partes por milhão (ppm).
7)Esse número deve ser comparado com a concentração medida nos últimos 50 anos, que mostra um crescimento linear de 310 ppm (1958) a 385 ppm (2008), bem acima do máximo nos períodos de aquecimento no passado. Esse aumento está diretamente relacionado com o aumento da população mundial e do consumo de combustíveis fósseis, fontes do gás.
8)A Terra passou por recentes flutuações regionais de temperatura; um ligeiro aquecimento na Idade Média (entre os anos de 905 e 1250) e um ligeiro resfriamento (Pequena Idade do Gelo) que afetaram a região do Atlântico Norte. A variação de temperatura foi de 0,2 grau.
9)O Sol tem um ciclo natural de 11 anos em que sua irradiação oscila periodicamente. Quando o Sol está mais ativo, é de esperar que a Terra aqueça. Contudo, não existe uma correlação direta entre o ciclo solar e o clima terrestre. Os resultados parecem contradizer a expectativa: mesmo que a última década tenha sido a mais quente nos últimos cem anos, o Sol tem ficado bem calmo, estando com seu ciclo atrasado.

Mesmo que a Terra tenha passado por períodos de aquecimento e resfriamento em seu passado, o aquecimento dos últimos cem anos está relacionado com uma maior concentração de gases poluentes na atmosfera e uma maior taxa de deflorestamento. Essa é a conclusão da maioria dos cientistas e das academias de ciência em todo o globo. 


MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "Criação Imperfeita"